sábado, maio 10, 2003

MULTIDÕES: Sabem, a melhor maneira de conhecer um país é olhar para o comportamento das suas multidões. As verdadeiras barbaridades costumam emergir no meio de multidões. Em Portugal, sobretudo. Na sua doce solidão, os portugueses são medianos, tristes, toleráveis; mas experimentem juntar um punhado de lusitanos e vejam se a barbaridade não aumenta de imediato. Olhem para Felgueiras: o povo continua a jurar fidelidade à sra. Fátima, a mesma sra. Fátima que os roubou impudicamente. Olhem para o Porto: o povo aninha-se no futebol e espuma um imenso ódio por Rui Rio e pela câmara. Nestas alturas de envilecimento colectivo, convém pôr a cabeça em ordem. A democracia não é nenhum regime de multidões, nenhum regime da rua, nenhum regime em que os anormais andam à solta a debitar inanidades. A democracia, amigos, é apenas uma forma de convivência pacífica, regrada, decente, que nos permite conduzir livremente a nossa vida, jantar de garfo e faca, e ter a certeza de que o poder, na sua lodosa obscuridade, não pretende entrar dentro da nossa cabeça. PL
POLÍCIA: São cinco da manhã no burgo e eu durmo placidamente. Não sou dado a sonhos, pesadelos, insónias. Durmo placidamente. O quarteirão pode explodir, a esquina pode surpreender-nos com um homicídio, o dr. Louçã pode filiar-se no CDS...Eu não acordo. Mas esta madrugada acordo; acordo porque um familiar atarantado avisa-me da presença de um polícia na minha porta. Trato de saber o que se passa e o polícia informa-me que dois vadios andaram a farejar o meu carro. Visto-me depressa. Saio com o polícia, num conúbio docemente reaccionário. Desloco-me ao local onde estacionei o carro. Temendo o pior, verifico que está tudo bem. Os vadios não forçaram as portas, não furtaram o rádio, não se interessaram por um exemplar da constituição portuguesa que trago nos bancos traseiros. Regresso a casa na viatura da polícia. Regresso à cama. Costumo assustar-me com a estupidez do poder, com a estupidez da autoridade mas a ignóbil demagogia daqueles que acham possível construir uma sociedade decente sem ordem, sem regras e sem uma noção digna e relevante da função das forças policiais, põe-me num estado de raiva comatosa que demora a passar. PL
ALBERTO, AS USUAL: No Correio da Manhã, às sextas, um caso raríssimo de lucidez e coragem. Leitura obrigatória. JPC
PORTO (2): Queima das Fitas. Na porta de minha casa, vestígios: latas de cerveja, vomitado ressequido, um insuportável cheiro a mijo. E um dos vidrilhos da porta docemente estilhaçado. Sem falar de um autocolante que, brutalmente agarrado aos azulejos, demorará uma eternidade a limpar. É o ensino superior português na sua fragorosa essência. Entro em casa, ligo a mangueira e removo a sujidade do passeio. E penso como a vida é profundamente injusta: tivesse eu presenciado estes actos de vandalismo e a arma do meu avô - uma arma de pressão que, a menos de cinquenta metros, consegue furar as duas primeiras camadas da pele - teria sido manejada da varanda com gozo e precisão. Agora é tarde, Inês é Marta...JPC
PORTO (1): Regresso ao Porto. Onze da noite. Conduzo por uma das principais artérias da cidade. A Marechal. O metro quadrado mais caro da cidade - e do país. Sinal vermelho. Páro. Uma emigrante de Leste, com um filho nos braços, mendiga a esmola da praxe. Declino o convite. Então sinto que alguém tenta abrir a porta traseira, sem sucesso, porque tenho o estranho hábito de trancar as portas da máquina quando a noite cai. Olho pelo retrovisor e vejo um rapaz que se afasta apressadamente do local. A mãe romena também. Esta é a minha cidade, subitamente transformada numa espécie de Rio de Janeiro onde parar nos sinais pode ser um caminho para a violência, ou para o saque. Chegará a altura em que a cegueira política e a inoperância policial acabarão por cansar legitimamente os cidadãos, dispostos a trocar o voto por um Messias populista, tipo Le Pen, amante do policiamento e da repressão. Será um triste dia que podia ter sido evitado. Sinais não faltam. JPC
PORN: La Féria comprou o Olímpia. Não percebo porque toda a gente insiste em dizer que a velha sala mudou de ramo. PM
SOUNDBYTE DO MÊS: No meu tempo havia uma coisa muito bonita que era a sedução. Ouço esta singela frase, repetidamente samplada numa canção de Sam the Kid. The one and only Vitor Espadinha:a concisão, o lirismo, a subtileza, o poder evocativo. No meu tempo havia uma coisa muito bonita que era a sedução. Lindo. PM

sexta-feira, maio 09, 2003

TODA A VERDADE: Falta, é claro, explicar que o fenómeno que se dá em Bragança também ocorre em Felgueiras, onde os probos maridos deixam as esposas por umas cariocas gostosas. Assim sendo, foi constituindo o movimento Mães de Felgueiras, que decidiu contra-atacar, mandando uma emissária ao Brasil para aulas de dança do ventre, sexo tântrico, masturbação mútua, massagem e relaxamento e sucção intensiva. Esta é a verdade sobre Fátima Felgueiras. PM
BRAGANÇA: Eu conheço pessoalmente uma Mãe de Bragança (no kidding). Não conheço a brasileira prevaricadora, mas o marido transviado era um português típico, pacato e PSD. Claro que me agrada que o português típico, pacato e PSD, possa ser sensível às elaboradas técnicas de sucção transatlânticas, ou lá o que é que as meninas fazem. Pelo menos, não são tão aborrecidos. Mas a verdade é que a portuguesa típica não está preparada para uma concorrência erótica arreganhada. A passividade sexual das mulheres portugueses é impressionante (ao que me dizem, que eu é mais poesia finlandesa). As moças e as senhoras parecem desconhecer as particularidades do membro viril, a capacidade erógeno de outras zonas e situações, e a guerra sem quartel que uma boa queca pode e deve ser. Dir-me-ão que as mulheres têm muito mais razão de queixa dos machos portugueses, que nem fazem bem ideia onde fica o clitóris (sabem apenas que é na margem sul) e julgam, como o Paulo Coelho, que uma bem dada demora no máximo 11 minutos. Mas a questão não se põe, porque Bragança, e outras zonas do martirizado interior, ainda não têm Ricardões e Wilsons para satisfazer o mulherio. As brasileiras adiantaram-se, viram o nicho de mercado, e estão aí a ervorganhar as portuguesas, e desmentir, entre os homens bragantinos, a existência do período refractário. Sou pelo mercado, esse e outros. Nessa matéria, estou com o EPC (nós os gordinhos somos uns tarados): melhorem a técnica e não se queixem, Mães de Bragança. E, realmente, essa de se darem a conhecer como Mães pode dar melodrama, mas também tira a tusa toda. Aprendam, mulheres do meu país. PM
ANTES O REININHO: A questão do envio de militares portugueses para o Iraque pode ser uma questão política e constitucional importante. Mas há sobretudo a questão do bom gosto: mandar para Bagad a Guarda Republicana? PM
DESCUBRA AS DIFERENÇAS: Querem saber porque é que o Bloco pegou e vai continar a pegar, e os «renovadores» comunistas são uma anedota. Comparem a Manifesto e a Ideias à Esquerda. Palavras para quê? PM
MAS LÁ QUE ELA ERA GIRA, ERA: Penso que já ficou clara a estima que os Infames têm pelo nosso excelso poder local. Os sacos azuis de Felgueiras só têm a originalidade de serem de Felgueiras. Que a senhora homónima se tenha pirado para o Rio é que é mais grave, pois mostra como anda a Justiça em Portugal (ó Durão, remodela a Celeste, se fazes favor). O único consolo é que talvez o PS ganhe alguma vergonha na cara, e se cale um bocado com o «caso Portas» («caso» onde Portas é testemunha). Embora saibamos bem que «PS» e «vergonha na cara» na mesma frase só pode ser chalaça. PM
CARVALHO, AMIGO: Entretanto, estranhamente para um explorador da classe operária, estou com (vários) salários em atraso. Será que me aceitam na CGTP? PM
TOP 200: No número anterior da Visão saiu uma patusca lista dos 200 mais poderosos da chafarica. Uma desilusão para a ColunaA: o João Pereira Coutinho que vem é o milionário e não o colunista, e há um Mexia mas é o António Mexia. Prémio de consolação (?): conheço nove notáveis e trato um deles por tu. Quer dizer, conhecer não conheço, aperto-lhes a mão se me cruzar com eles; assim não me safo. Felizmente há o Nuno Artur Silva, que tenho interrogado sobre as vantagens sexuais de ser «poderoso». Que, no fundo, é o que interessa àqueles duzentos. Ou pensavam que era mandar nuns escassos milhões de pacóvios? PM
ATÉ OS COMEMOS: Era previsível: dei a volta pelos blogs, e a intensidade da discussão política abrandou. Malhas que a guerra tece. Claro que se trata de um mero intervalo, mas vai dar tempo para que os blogs dediquem mais posts a outros assuntos que nos interessam, como as artes e as moças. Há cada vez mais blogs, e a maioria deles são nossos confrades. A União dos Blogues Livres cresce a olhos vistos, e daqui a nada desata a salvar a Pátria à conta de jantaradas. Como já foi amplamente divulgado, Pacheco Pereira tem um blog, sendo portanto a primeira figura pública a ter um bicho desses por estas bandas, a seguir ao David Fonseca (brains & looks, há de tudo na net). Tenho uma listinha de assuntos candentes, que vou agora desviar. Coluna Infame, Paris, Londres, S. Petersburgo, Mundo, I'm back. PM
PRIMAVERA: O meu amigo G. é um direitista, mas tem algo de idealista: ao dar pela minha falta ontem de madrugada, depois de ter prometido o regresso à Coluna, telefona-me: «Que se passa? Está tudo bem? Arranjaste uma namorada?». Não se passa nada, apenas cheguei tarde a casa e tive que madrugar, e foi impossível escrever uns postzitos. É a Primavera: nas últimas semanas, não têm conta as conversas sobre outros assuntos que vão parar ao assunto das moças. Somos mesmo uns animaizinhos à merce dos elementos. PM
PARADOXO: Dias de pós-guerra no Iraque e ainda não se viu as Nações Unidas condenarem formalmente a guerra. Mas, coisa curiosa, uma caterva de iluminados continua a declarar a guerra ilegítima para as próprias Nações Unidas. Cheira-me a paradoxo. PL
POIS É: Acabei de passar pela Fátima Felgueiras, na Rua Augusta. Disse-lhe olá, perguntei pela filha, lamentei o que lhe estão a fazer, a monumental cabala que estão a orquestrar contra ela. Ela chorou no meu ombro. Cedi-lhe um lenço. A subir para o Chiado, passámos por dois polícias. Sorrimos. Trocámos telefones e combinámos um almoço para a semana. Depois aviso-vos. Na vida, temos que ser uns para os outros. PL

quinta-feira, maio 08, 2003

O LIVRO DO MÊS: Alexandre Melo escreveu o único livro sobre a globalização que interessa ler em língua portuguesa. A coisa chama-se «Globalização Cultural» e não é – repito: não é um panfleto ideológico, destinado à comoção política das massas. Nenhuma defesa. Nenhum ataque. Aliás, atacar o quê? «Atacar» a globalização - como se o fenómeno fosse uma entidade perfeitamente homogénea e definível na sua pasmosa simplicidade? E «defender» o quê? Defender a «cultura europeia» face à «cultura americana» – como se apenas existisse uma cultura europeia e uma cultura americana? Alexandre Melo não vai por aqui. Faz bem. A visão é histórica, informada pela história e pela mais arrasadadora evidência: quando falamos de globaliação, falamos de um processo que sempre esteve presente no curso da Humanidade. Pretender travar este fenómeno – no fundo, travar o desejo legítimo de seres humanos partilharem mercadorias, experiências, afectos - é o mesmo que pretender travar o pluralismo das sociedades abertas. Não resulta. Nunca resultou. Gerou estagnação, pobreza, paroquialismo e solidão. Vejam o Camboja. Vejam a Albânia, que muitos meninos do Bloco apontavam como exemplo político e democrático, não há muito tempo, et pour cause. E vejam o Portugal do século XX. Além disso, Alexandre Melo desmonta a falácia de que um mundo globalizado é inimigo instintivo da diferença, impondo uma semelhança imperial sobre as manifestações simplórias do localismo pueril. Uma fantasia doutrinária que colide frontalmente com a evidência do mundo: um mundo onde, precisamente pela utilização dos mecanismos próprios da globalização, as pequenas realidades «locais» têm hoje mais voz do que nunca. Onde é mais simples comer bresaola almoço, sushi ao jantar – e terminar a noite com cânticos do Tibete. Sem sair do quarteirão. No fundo, a globalização ressuscita apenas a mais velha luta do mundo – a luta entre Atenas e Esparta, entre as sociedades abertas e os seus inimigos, entre aqueles que amam a liberdade e os que sempre olharam para ela como uma ameaça directa às suas mentes concentracionárias. JPC
ABRUPTAMENTE, NESTA PRIMAVERA: Carrísimos amigos, entre estar de volta e publicar o primeiro post medeiam sempre algumas horas, ou mesmo dias, dada a proliferação de blogs e de matéria a pôr em dia antes de desatar na opinionite. Daí o meu atraso. Esta madrugada, como de costume, estarei de volta ao meu posto. A grande novidade, na minha ausência, é a chegada do Imã Pereira, o nosso líder espiritual, à blogosfera. Tudo estragado: no Abrupto teremos então teoria política e Sá de Miranda, e para A Coluna Infame sobrarão apenas piadas sobre mamas e britpop. Se o nosso ideólogo toma as rédeas, que faremos nós? É uma crise, meus amigos, é uma crise. Soubemos, entretanto, que o País Relativo se prepara para contra-atacar: será esta semana criado o blog de Sottomayor Cardia, que tem o working title «Caixa dos Pirolitos», vá-se lá saber porquê. Acompanharemos atentamente a situação. PM

quarta-feira, maio 07, 2003

AVÉ: Pacheco Pereira recebeu já as saudações da blogosfera. Associamo-nos à festa e enviamos-lhe daqui as boas-vindas. A blogosfera – este viciante mundo de crónica, literatura, diário, jornalismo e discussão política - está a tornar-se um caso sério. PL
É hoje a segunda sessão de «É a Cultura, Estúpido», no Jardim de Inverno do Teatro S. Luiz. Anabela Mota Ribeiro entrevista Clara Ferreira Alves; José Mário Silva, Pedro Mexia e Nuno Costa Santos dizem o que andam e não andam a ler; João Pereira Coutinho e Daniel Oliveira discutem «Globalização Cultural», de Alexandre Melo; e Ricardo de Araújo Pereira satiriza o meio literário. E há também um senhor furibundo que protesta a meio da sessão, e que já foi devidamente contratado. Apareçam por lá às 18.30, it's free. E dêem-se a conhecer aos bloguistas, que eles não mordem.

terça-feira, maio 06, 2003

OUTRO: Já agora, outro aviso: um amigo informa-me que, depois do meu texto sobre o Beckett no último Dna, correm rumores em Lisboa de que eu possuo os «colhões» do pobre Samuel nas gavetas de minha casa. Quero aqui, com toda a solenidade que o caso exige, esclarecer que não, não possuo nenhum dos «colhões» de Beckett na minha residência e, muito menos, nas minhas gavetas. Estes boatos são uma praga e eu não quero ficar conhecido para a posteridade como o "Guardador de colhões". Entendido? PL
WARNING : Amigos: um anormal fluxo de trabalho abateu-se sobre os três autores desta coluna, o que está a afectar o bom andamento dos posts. Podem estar descansados que nenhum de nós foi convidado para secretário de Estado; é só uma pequena e passageira dificuldade. Não nos deixem, está bem? PL

segunda-feira, maio 05, 2003

VOLTA À NORMALIDADE: Com o regresso de Pedro Mexia de um périplo pelas ilhas, esta semana vai ser mais normal do que a anterior. Continuem a mandar-nos mails para o endereço de sempre: colunainfame@hotmail.com . Prometemos resposta. Só não prometemos bons modos. Mandem vir. PL
PORTAS (4): Para terminar, deixem-me responder à pergunta "Quando é que um ministro se deve demitir"? Não há respostas miríficas ou abstractas para isto. Mas, com alguma prudência, julgo que se pode dizer o seguinte: 1) um ministro deve apresentar a demissão se praticou actos politicamente censuráveis no exercício das suas funções; 2) um ministro também deve dizer adeus se, durante esse mesmo exercício, foi responsável por actos mais ou menos privados que se repercutam negativamente na sua governação. Não creio que Portas esteja em nenhuma destas situações. Não me entendam mal: não estou a defender a seriedade do dr. Portas (eu só defendo a minha seriedade e a dos meus amigos) ou enredar o tema em preciosismos jurídicos. Estou a dizer que o caminho dos que gritam pela sua demissão é demasiado perigoso. PL
PORTAS (3): Depois, é um pouco chocante ouvir dizer que Portas é responsável pela inocência com que se ligou à Universidade Moderna; ou afirmar-se de ciência certa que um mau gerente da Amostra só pode ser um mau gestor dos milhões do orçamento da defesa; ou dizer-se que, no mundo franciscano das universidades portugueses, o salário de Portas era um crime. A "ética política" é um conceito eminentemente problemático e ambíguo. Serve para que, em Inglaterra, a família, os antecedentes criminais, a história clínica, as contas bancárias e, sobretudo, uma vida sexual relapsa, obriguem um ministro a demitir-se. Serve para que, em França, um ministro acusado por factos alheios às suas funções ministeriais se demita (por exemplo, Strauss Khan). Não sei se os relativos querem importar toda esta instrutiva prática cá para o burgo. Eu não quero; e, por favor, não me falem no caso de António Vitorino. Vitorino quis proteger o Governo do qual fazia parte; esteve no seu direito mas nem sequer era obrigado a demitir-se. Portas não quer proteger o Governo da suspeição que paira sobre a sua cabeça; e o problema é do Governo, não é do país (o relativo e o outro). Quem pretenda, aliás, que Vitorino criou um precedente político, segundo o qual ministros acusados por comportamentos anteriores ou estranhos às suas funções ministeriais devem, forçosamente, demitir-se, está a dizer que um tribunal pode fazer o que não faz um parlamento. E está, caro PAS, a atirar a responsabilidade política para um terreno pantanoso que favorece os jornais e a falta de escrúpulos mas não beneficia a democracia. PL
PORTAS (2): Passou quase um ano e o julgamento político de Portas tem sido, por vezes, de uma irrelevância abissal. Para muitas almas exigentes, Portas pecou por ser Portas, isto é, por ser o sinistro farsante, destituído de ética e valores, que faz na política o contrário do que exigia no jornalismo. Esta ideia, muito repetida, tem, todavia, um problema. A ideia de que Portas se tem de submeter aos mesmos padrões de moralidade que, um dia, exigiu a destacadas figuras do cavaquismo, significa, na essência, que os parâmetros de responsabilidade política exigíveis aos ministros variam. Aos moralistas ou aos ministros que, em tempos, andaram de dedo levantado nas águas do jornalismo (como Portas) é exigido o cumrpimento de uma responsabilidade política mais violenta; enquanto todos aqueles que, castamente, nunca tomaram nenhuma posição pública de risco, sujeitam-se a uma responsabilidade mais benigna e menos exigente. Sucede que a responsabilidade política dos ministros é uma coisa demasiado séria para possuir variante distintas e contraditórias. PL
PORTAS: Os Relativos acusaram os meus comentários sobre o dr. Portas, portanto vamos lá relativizar. Na Coluna temos regras: eu polemizo essencialmente com o País da Rosa, o Mexia com o Blog de Esquerda e o Coutinho, quando escreve, polemiza com todos. Dito isto, vamos a umas notas prévias: 1) O meu conhecimento sobre o processo da Moderna é trivial (ao contrário, decerto, da MVS que leu tudo sobre o caso e deve ter assistido a todas as sessões do julgamento). Sucede que eu não pretendo discutir o processo da Moderna e da corte dos Braga Gonçalves. Pretendo sim discutir as implicações públicas, políticas e até constitucionais, de um pretendo dever de Paulo Portas em se demitir. 2) Não ignoro que a trapalhada das ligações de Portas à Universidade Moderna fragiliza o ministro da defesa e fragiliza o Governo. Mas não me venham os relativos, de moral ofendida, falar no perigo que a permanência de Portas significa para a qualidade da democracia e para a confiança na política. A vossa insistência na demissão de Portas é uma pura oportunidade estratégica de enfraquecerem a coligação e acabarem com o Governo. Não é a saúde do regime que vos leva a comoventes apelos à moralidade política. 3) Eu não conheço Paulo Portas, pelo que escusam de mandar bitates sobre as minhas relações com o senhor porque elas não existem. Nem sequer acho que Portas precise de uma defesa pessoal - um erro infantil que os dirigentes do PP têm cometido. Para esclarecimento de todos, era bom que aqueles que pedem a demissão de Portas começassem por dizer que não gostam dele. Seria mais honesto do que andarem de boca cheia com a moralidade política. PL

domingo, maio 04, 2003

GOOD NEWS: A Oficina do Livro republicou um conjunto de textos de Luíz Pacheco com o título "Raio de Luar". Repito: a Oficina do Livro republicou um conjunto de textos de Luíz Pacheco com o título "Raio de Luar". Estão à espera de quê? PL
O QUE SE SEGUE DEPOIS DA REGENERAÇÃO: Lembrei-me agora: onde é que anda o Neil? PL
DEPRESSÃO: Andamos deprimidos, cabisbaixos, amodorrados. Mas talvez tudo mude quando José Mourinho publicar finalmente o seu livro sobre um ano glorioso para o Porto. Veremos qual o segredo de Mourinho para o Porto ter chegado a tudo quanto é final do futebol português e europeu. Só espero que não haja revelações sobre o balneário. O que se passa no balneário de um clube de futebol não me diz respeito; é lá com eles. Deixem-nos sossegados, sim? E respeitinho pela cristandade. PL
PODER E LIVROS: Reconheçam que a ideia de editar um livro sobre os 365 dias do actual Governo é boa. Parece que a obra vai custar 15 euros e há já quem pense em propo-la ao prémio Pen Culb deste deste ano. Mas não é isso que me interessa. Acredito que este tipo de publicações devia ser obrigatório. Nenhum titular de cargos públicos poderia zarpar do poder sem puxar pelos neurónios e publicar qualquer coisinha. E isto independentemente do cargo: ministros, directores-gerais, funcionários, toda a gente deveria ser obrigada a escrever livros em nome da transparência e do progresso cultural do país. Se me permitem, antecipo-me com alguns títulos: "1200 dias na secção de fotocópias do Ministério do Ambiente"; "25 dias na retrete do Instituto Superior Técnico"; "200 dias a pintar a casa dos vereadores da Marinha Grande"; "25 dias (e só 25 dias) no cemitério dos Prazeres"... Portugal não vai ficar o mesmo, ai não vai não. PL
DIVINA COMÉDIA: A comédia política é sempre perigosa. Ou se tem muita subtileza e algum tacto, ou transformamo-nos fatalmente numa espécie de Carlos Carvalhas que é melhor humorista quando não quer do que quando quer. Mas o muito elogiado Jon Stewart, o homem forte da Comedy Central que podemos ver diariamente na Sic Radical, é talvez o melhor exemplo de como se pode ser politicamente corrosivo e ter graça ao mesmo tempo. Stewart é um actor e isso faz muita diferença: nos tempos, no ritmo, na gesticulação (a comédia física é a mais difícil)... Sobretudo, não tem um pingo da desonestidade intelectual de Michael Moore, um senhor que, embora talentoso, gosta de entrar na casa dos outros para os insultar. Todos os dias, Stewart bate forte e feio na Administração Bush, na estação Fox, nos falcões de Washington. Delirante. Se a nossa esquerda fosse assim, eu pensava duas vezes. PL
BRASIL: Falo de Nelson Rodrigues que é o nome maior de uma tradição de jornalismo e literatura brasileira. O drama dos brasileiros está na abundância, não na carência. De Euclides da Cunha a Nabuco, de Rubem Braga a Paulo Francis, o Brasil sempre fabricou grandes jornalistas-escritores ou escritores-jornalistas. Ainda hoje as coisas são assim (olhe-se Nelson Ascher que, de vez em quando, nos envia generosamente alguns textos). O caso português é outro. Entre nós, os jornais estão a ser crescentemente povoados por políticos. Os políticos escrevem sobre outros políticos. Falam em «estratégia», em «visão», em «modelo», numa prosa indigesta que, às vezes, se dirige unicamente aos seus pequenos nichos de poder. Por isso, quem acredita no jornalismo, sabe que é preciso devolver os jornais aos jornalistas. O poder é outra coisa . PL
NELSON: Passo pela Fnac do Chiado num dia solarengo, evito a secção de política (alugada pelo estendal da Campo das Letras) e eis que encontro três livros de Nelson Rodrigues que faltam nas minhas prateleiras. Um deles - "Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo" - recolhe as crónicas do consultório sentimental que Nelson Rodrigues assinou sob o pseudónimo de Myrna durante o ano de 1949 no diário Jornal da Noite. Em 1949, Nelson Rodrigues não era ainda o magnífico estilista da língua portuguesa que, nos anos 60, marcou indelevelmente o jornalismo brasileiro (expressões como o «óbvio ululante», «flor de obsessão», «pátria em chuteiras», «olho rútilo», «translúcido canalha» são de uma beleza intemporal). Mas ao lermos crónicas com títulos como "A mulher feia deve ser quase inconquistável" ou "Esposas sem amor, esposas sem marido", percebe-se que o seu estilo tinha já um vigor, um ritmo, uma cuidada atenção ao adjectivo, que são absolutamente inultrapassáveis. Imitá-lo é uma impossível tarefa: aquela coloquialidade, aquela devoção pela palavra, a desarrumação lírica dos seus textos, são apenas dele. Um grande escritor não se imita; um grande escritor dá-nos cabo da vida. Eu já começo a ter medo de abrir os livros de Nelson Rodrigues, medo de enfrentar frases como esta: "não é a mulher que ama, por vontade própria e consciente, mas o que homem que se faz amar". Isto pode ser muito discutível mas digam lá se não é muito bonito? PL