quinta-feira, outubro 31, 2002

O MANIFESTO : O manifesto de notáveis que o «Diário de Notícias» publicou ontem não é, evidentemente, um documento irrelevante. Toda a gente sabe que não há prosperidade sem empresas e que não é a mesma coisa o país obedecer ao sr. Belmiro ou a magnatas da Baviera. Nós somos patriotas. Mas o tom do manifesto não deixa de ser lamentoso e equívoco. Primeiro, só há uma forma de evitar que o capital estrangeiro se apodere das nossas empresas: nacionalizar. Quererão os notáveis nacionalizar? Segundo, as súplicas dos notáveis dirigem-se contra o mercado comunitário que é, como se sabe, um mercado aberto e severamente concorrencial. Mas quererão os notáveis acabar com este mercado?


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quarta-feira, outubro 30, 2002

É A GRAMÁTICA, ESTÚPIDO: O sr. Giscard, à frente de um grupo de «sábios» (mas na UE, enfim, até Mário Soares passa por «sábio»), fez uma série de propostas no sentido de uma Constituição Europeia e de um federalismo total. Escusado será dizer que somos pela Europa das Nações, e portanto contra qualquer aprofundamente do projecto europeu noutro sentido. Mas mais do que criticar ponto por ponto os desideratos giscardianos, vale a pena dizer que o dito «sábio» quer que a comunidade de países se passe a chamar «Europa Unida», em vez de União Europeia. Argumenta ele que, por um lado, «União Europeia» é uma realidade do tratado de Maastricht, que será revogado por uma futura (Deus nos livre) Constituição; e que, por outro lado, prefere que o substantivo seja «Europa», para que os «jovens» (vocábulo fatal) se refiram à «Europa» e não à «União». Acontece, sr. Giscard, que a União Europeia, ou o que quer que se chame o futuro modelo, será sempre um momento político-institucional historicamente localizável, e nunca se poderá confundir com a Europa enquanto realidade que transcenderá sempre qualquer projecto político específico. Mesmo que a actual União venha um dia a integrar todos os países europeus, só por inaceitável usurpação se poderá chamar a isso «a Europa», que é, antes do mais, uma realidade civilizacional e espiritual. É a gramática, estúpido.

terça-feira, outubro 29, 2002

UMA COISA QUE TEM DE SER DITA: Camacho Costa não é apenas um comediante medíocre. Desde há uns tempos que este nosso compatriota tem exibido uma abissal falta de vergonha ao utilizar uma doença cruel (da qual felizmente se salvou) para promover o ego. A falta de vergonha e a indignidade, sr. Camacho, não se curam.
TRÊS IDEIAS SOBRE UM DEBATE: Assistimos ontem ao debate sobre a nova lei de gestão hospitalar. Para a posteridade, ficam três factos simples: 1) Ninguém respeita a pueril ex-ministra Maria de Belém; 2) a discussão sobre a administração dos hospitais portugueses não pode ser feita com desconfiança (da qual, como de costume, se encarregou Francisco Louçã) e com putativos privilégios; 3) que ninguém se engane: na saúde (como, aliás, na educação, na justiça, na Administração Pública e, genericamente, no Estado grosso que temos), é tempo de acabar com farroncas.
A RÚSSIA PERCEBEU: «As Mr. Bush has repeatedly, he (Putin) raised the specter of a terrorist attack using nuclear, chemical or biological weapons, vowing that Russia would respond with its full might, striking outside of Russia's borders if necessary to destroy terrorists' bases of support."`I would like to declare with full responsibility that if anyone tries to use such means with regard to our country," he said, "Russia will respond with measures that are adequate to the threat to the Russian Federation, striking on all the places where the terrorists themselves, the organizers of these crimes and their ideological and financial inspirers are."I stress," he added, "wherever they may be located."» (New York Times, 28 de Outubro).

APLAUDIMOS: A escolha de Diogo Pires Aurélio para Director da Biblioteca Nacional. A prova de que um governo de direita pode ir buscar pessoas pelo seu mérito, e não pelo cartão de sócio.
O PRESIDENTE: No seu último editorial dessa superior instituição chamada Expresso, José António Saraiva perguntava, baseando-se na aceitação presidencial da proposta de exoneração do General Alvarenga: para que serve o Presidente da República? À esquerda, também já se ouvem vozes de acusação à passividade e ao abstencionismo do nosso Jorge. Pois bem. Vamos ser claros: o Presidente da República pode ser, no nosso sistema político e constitucional, uma figura mais ou menos relevante. Mas convém não esquecer o seguinte: primeiro, Jorge Sampaio não é Mário Soares, que fez do seu segundo mandato presidencial um extraordinário e revelador exercício de fancaria política (ler o livro da provedora dos leitores do Diário de Notícias, Estrela Serrano); depois, por mais que tentemos, não nos recordamos de estes senhores vociferarem tanto contra a discrição presidencial durante os últimos governos do PS. Só agora que estão na oposição é que se lembram que o Presidente existe.

IMPRENSA: É evidentemente uma boa notícia saber que Portugal, segundo dados conhecidos a semana passada, está em sétimo lugar na lista dos países com maior liberdade de imprensa. Era evidentemente muito boa notícia se estivêssemos em sétimo lugar na qualidade da imprensa.
OS CRÍTICOS DE PUTIN: É verdade que o gás utilizado (BZ? Sarin?) pelas forças especiais russas no assalto ao teatro de Moscovo ocupado por um comando checheno fez 116 entre os 117 reféns mortos, para além dos terroristas. Mas também é verdade que resgatou 650, mesmo se uma parte dos resgatados esteja ainda nos cuidados intensivos. Se não fosse essa intervenção, quantos mortos haveria neste momento a lamentar? Quando se fala dos métodos «soviéticos» de Putin, esquece-se que a Rússia, dadas as suas dimensões e a sua fragmentação pós-imperial, para não falar da reconversão económica, precisa de um pulso forte. E esquece-se que com terroristas não pode haver cedências nem negociações. Putin fez o que lhe competia, e os que o criticam fazem o que costumam. A situação é muito diferente da do Kursk, momento no qual uma certa atitude gélida de «razão de Estado» nos chocou. Aqui a questão era salvar o maior número de vidas, eliminar os terroristas, não ceder a estes métodos. A questão chechena, essa, não tem nada que ver com o assunto. Porque se os autonomismos são, muitas vezes, legítimos, o terrorismo é sempre um acto bárbaro perante o qual não se pode ceder. Putin deu o exemplo. Assim soubesse o Ocidente agir perante a ofensiva que em todo o mundo decorre contra os nossos valores.
E CUIDADO COM ESTE PORMENOR: Um dado de certo modo lateral, mas muito preocupante: 48 dos novos congressistas brasileiros (em 513) são evangélicos, ou conquistaram o seu lugar devido ao voto evangélico (mesmo os socialistas como Garotinho cobiçaram esse voto). E é preocupante porque, na maioria dos casos, não estamos a falar das igrejas protestantes clássicas, mas de toda a espécie de seitas e «novos movimentos religiosos», alguns certamente efémeros, outros já com uma forte implantação (como a tristemente famosa IURD). O que significa uma dependência confessional de parte da classe política, o que não é desejável numa democracia, particularmente se as igrejas em causa são muitas vezes de origem e seriedade duvidosas. Curiosamente, esse peso evangélico vai com certeza produzir uma política «de direita» em termos de costumes e de leis sobre a família, o que é tanto mais irónico quanto foi sobretudo à esquerda que se disputou esse eleitorado cada vez mais influente no Brasil. Más notícias para uma das maiores democracias do mundo.
POR OUTRO LADO: Por outro lado, a vitória de Lula, seguindo-se à de Chávez e aos mais recentes avanços da esquerda anti-globalização na Bolívia e no Equador, pode gerar um «frentismo de esquerda» latino-americano, ainda que falso, ainda que instrumentalizado, ainda que «psicológico», e esse não será com certeza o caminho da prosperidade. Talvez a oportunidade dada pelos eleitorados a esta esquerda possa, afinal, servir para provar que há remédios piores do que as doenças.

segunda-feira, outubro 28, 2002

LULA: Como se esperava, Luís Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil. Depois de ter estado à beira de uma vitória logo na primeira volta, os resultados da segunda ronda não deixam dúvidas: Lula teve 61, 27 % dos votos, contra 38,73 para José Serra, o candidato do governo cessante. No gigantesco universo eleitoral brasileiro (cerca de 115 milhões de eleitores), isso significa que o metalúrgico e sindicalista teve mais de 55 milhões de votos, um número histórico que bate o recorde detido por Ronald Reagan. Trata-se, em suma, da maior vitória da esquerda de que há memória em décadas recentes. Mas quem ganhou as eleições? Quer dizer, quem é Lula, como vai governar; haverá razão para receios de instabilidade, de uma presidência próxima do golpista Chavez, do ditador Castro, das sinistras FARC, homens e movimentos que o apoiam sem reservas? Vale a pena lembrar que o Partido dos Trabalhadores (PT) é uma amálgama de tendências, e que se predomina o chamado «Campo Majoritário» (isto é, os moderados), 30% do partido é dominado por grupos marxistas variados, lenininstas, maoistas, trostskitas, com nomes coloridos como «Democracia Socialista», «Força Socialista», «Articulação de Esquerda» e «O Trabalho», para além, claro está, do MST, Movimento dos Sem-Terra, influente sector reivindicativo de tendência abertamente comunista. Sendo minoritária, esta ala extremista – a que os jornalistas brasileiros chamam «os xiitas do PT» - tudo fará para ver consagrada as suas teses, que são de um estatismo sem peias, contra a economia de mercado, rasgando os compromissos internacionais do Brasil, pondo em causa as instituições. Não parece que seja esse o caminho desejado pela esquerda moderna, que vai pôr os olhos nesta nova fase brasileira. Até porque o PT, vinte e dois anos e quatro candidaturas presidenciais depois, já não é um partido fora do sistema; pelo contrário, a sua implantação no país é notável: 3 governos estaduais, 184 prefeituras, 91 congressistas (contra 84 do PFL e 73 do PMDB), 14 senadores (a seguiraos 19 do PFL e aos também 19 do PMDB). Ou seja, o PT tornou-se, em toda a linha, um partido de governo, com o recentramento ideológico e pragmático que isso implica, e as primeiras declarações de Lula são nesse sentido, embora enfatize a «esperança» que a sua vitória significa para muitos. Não é de crer, portanto, numa presidência de «estrela vermelha» (símbolo do partido), com ocupação de fazendas, irresponsabilidade orçamental, um nacionalismo económico de tipo messiânico que, sob a capa da anti-globalização, representa sempre, como bem sabemos, um movimento reaccionário. Teremos provavelmente no Palácio do Planalto um presidente «social-democrata», «trabalhista», evidentemente à esquerda dos seus congéneres europeus – afinal, estamos na América Latina – mas nada que ponha em causa o regime ou que afunde o país do ponto de vista económico (e sabe Deus que a situação já é bem desesperante). O que é curioso é que se olharmos para a frieza dos números, Fernando Henrique Cardoso, um intelectual de esquerda recauchutado, foi um bom presidente, ao menos no primeiro mandato, com uma recuperação espectacular no nível de inflacção, e com níveis satisfatórios de crescimento numa série de outros domínios, bem como uma estabilidade e uma credibilização internacional do país. Mas a verdade é que há um fosso entre estas elites estrangeiradas do Brasil e o grosso da população, e a vitória do metalúrgico Lula é um sinal inequívoco da derrota das elites. Serra, competente e bem preparado, embora sem carisma, fez o que pode, e a mais não era obrigado. Mas a verdade é que os brasileiros quiseram mudar de página, dar uma oportunidade a Lula (mais, julgamos, do que ao PT, cujo eleitorado base ronda os 30 milhões); essa aposta foi ao ponto de certas figuras moderadas, como Sarney, e da direita, como Paulo Maluf, o pateta Itamar e o polémico Antonio Carlos Magalhães, terem dado o seu apoio ao candidato petista, que aliás tem como vice um milionário (José Alencar), para que não haja dúvidas. É certo que a política brasileira é bastante misteriosa para quem não a acompanha atentamente, e que se fazem sentir a influência dos caciques, dos magnatas, da clique dirigente, e por isso nem é de estranhar que a «direita» (mas o que é ser de «direita» no Brasil?) não tenha apresentado candidato. A táctica dos sectores não-esquerdistas pode tanto passar por influenciar a governação, no melhor dos cenários, como apostar no «quanto pior, melhor», que seria a via maquiavélica. Sem que seja esse necessariamente o resultado, a verdade é que a vitória de Lula, de grande pendor emotivo, se faz de «esperança», desejo de «mudança» e umas quantas ideias «contra», mais ou menos cozidas entre os vários sectores da esquerda. Não parece que seja o bastante para salvar um país-continente como o Brasil, com a miséria (54 milhões de pobres), a criminalidade (em momento crítico), o desemprego (12 milhões), tudo o que sabemos. Mas esperamos para ver. Afinal, quando lhe perguntaram um dia se era socialista, comunista, ou algo assim, Lula limitou-se a responder, com prometedora ironia: «Sou torneiro mecânico».




INTRODUÇÃO À POLÍTICA: Eu conheço pessoas desta terra que se interessam por política. Que participam, que acreditam em congressos, em concílios e em moções; que acorrem a hotéis para absorver discursos trémulos e regeneradores; que alimentam uma vontade salvífica e reformadora; que discutem se o Ferro será melhor que o António ou se o José Manuel tem carisma; que insistem na «estratégia», na «visão», na «substância», nas «ideias». Eu conheço pessoas assim. Ouço-as, estimo-as; ocasionalmente, discuto com elas, dou-lhes a minha opinião, mísera, que, para minha vergonha, elas não solicitam e, para minha vergonha, elas não aceitam. Estas pessoas acreditam e eu não acredito; empenham-se e eu não me empenho. Na sua opiniosa natureza, estas pessoas não percebem o meu silêncio, a minha passividade. Por vezes, ameaçam-me. Por vezes, observam-me com repugnância e desilusão. Por vezes, abandonam-me à minha triste sorte. A Pátria precisa deles. A Pátria não precisa de mim. A Pátria merece-os. Eu não mereço a Pátria. Eles têm um plano, uma ideia, uma certeza. Eles leram alguns livros, folhearam outros, absorvem os jornais, debatem em jantares. Têm, como se diz hoje, uma «consciência política»; adquiriram, como também se diz hoje, uma «visão do mundo»; vivem aqui e não noutro lado. Se os deixarem, não hesitarão em fazer daquela visão uma indestrutível realidade. Eu, por mim, não possuo um plano, uma ideia ou uma certeza. E, muito menos, uma «visão». Eu não possuo nada. Eu não sei nada. Eles sabem. Estas pessoas acreditam nelas e acreditam noutras pessoas. Se a ignorância e a brutalidade andam à solta, cabe-nos a nós fazer as coisas de outra maneira; se o laxismo é norma, cabe-nos a nós educar; se as ideologias desapareceram, hão-de vir outras; se a religião vegeta, temos que perceber porquê; se a televisão expõe o idiota, há que mudar a televisão e instruir o idiota; se a política se converteu num pântano de intrigas e incompetência, precisamos de outra política. Estas pessoas dizem isto. Estas pessoas compreendem e confiam. Elas não sentem dificuldades, não exibem angústias, não acreditam em problemas insolúveis ou em problemas permanentes. Estas pessoas confiam na espécie, no esforço humano, num futuro glorioso e perfeccionista. As suas dúvidas são simplesmente metódicas, simplesmente instrumentais. Para elas, há sempre alguma coisa por trás do erro ou do fracasso, uma explicação última para o falhanço ou para o insucesso. Para elas, há uma verdade essencial que tudo explica e tudo redime. Eu invejo esta firmeza e decisão. Eu também aspiro a esta certeza limpa. Eu também procuro ser como eles. Esfarelar-me em feiras e comícios. Exibir o meu apostólico “programa”, a minha indizível moção. Eu também sou um “homem político”, um “animal político”. Eu também tenho uma “consciência política”. E também aspiro - sim, se aspiro! -, à felicidade do próximo, ao esplendor português, a uma vida sem tormentos. Acreditem em mim. Acreditem neste propósito e nesta resoluta vontade. Eu não pretendo continuar a ser esta apática e apolítica criatura em que me transformei. Não quero mais saber dos prazeres. E desde já declaro repudiar sinecuras ou proventos ociosos. Não contem comigo para o vício. Ainda vou a tempo de mostrar a minha exuberância. Falta-me, é certo, optimismo, esperança, continuidade. E falta-me, também o sei, um partido ou um grupelho voluntarioso. Mas o resto não falta. O resto eu tenho. P.L.

WALLY GUTERRES: Em 1995, Cavaco Silva despediu-se sem glória, deixando atrás de si alguns anos felizes, um coriféu de traidores e um cansaço larvar sobre a sociedade portuguesa. Em 2001, Guterres também se despediu sem glória. Parece que a sua suspeitosa resignação – suspeitosa porque sempre nos pareceu que o engenheiro se fartara há muito de governar – se deu já há muitos anos. Ninguém menciona o nome de Guterres. Todos o esqueceram e ninguém se interessa. Alguém sabe onde ele pára? Em Portugal? No estrangeiro? Em Odeceixe? No PS, Guterres é agora um nome proibido. Foi também assim com Cavaco. Mas as comparações entre Guterres e Cavaco devem parar aqui. Onde quer que aparecesse e o que quer que dissesse, Cavaco sempre pôs o PSD aos pulos. Não será assim com Guterres: se algum dia ele decidir falar – e seria interessante perguntar-lhe: conta António, como é que isso foi? – ninguém vai dar-lhe muita atenção. Com alguma desgraça, será insultado. Para os seus amigos de partido, Guterres foi a maior desilusão política desde o 25 de Abril. O que não deixa de ser estranho porque o país já conheceu desilusões políticas bem maiores do que Guterres. É também estranho que estas pessoas não tenham visto. Detestam-lhe agora a simpatia e a pose conciliadora. Abominam o católico. Lamentam a indecisão. Mas: não conheciam isto antes? Não conheciam Guterres antes? Um pouco mais de decoro não lhes ficaria mal.

PRÉMIO «DELETE»: Na tradição dos melhores «blogs», daremos regularmente vários prémios, a quem, por palavras, actos, acções e omissões, provar merecê-los. O prémio Delete é entregue à figura que por declarações e/ou actuação mostre a sua total irrelevância no panorama nacional ou internacional. Esta semana, pelas suas elocubrações sobre a possível extinção do PP, o prémio vai para: Manuel Monteiro. Parabéns, Manel. DELETE.
TUDO ISTO É TRISTE, TUDO ISTO É FADO: Não deixa de ser curioso esse diagnóstico que corre de boca em boca, segundo o qual estamos «tristes». Claro que a «tristeza» é para uns o Governo, para outros a «pesada herança», e para outros ainda a famigerada «crise». Mas a verdade é que a «tristeza» não vem de agora. Salvo momentos precipitados, insconscientes, exagerados e pacóvios de euforia, há muito que somos um povo triste, e não, não é por causa do «25 de Abril». Portugal é uma nação (por enquanto) sem um desígnio, um propósito, uma ideia, uma vontade de excelência, ou de um «vivre sa vie» que fosse. «Vamos indo», na magnífica expressão comum, às vezes «bons alunos», outras vezes «na cauda», mas numa gestão corriqueira e sem significado enquanto destino colectivo. Na época de Eça já era assim, e conhecemos os literários queixumes dessa geração, mas em Camões já essa tristeza é «apagada e vil». A verdade é que «o esplendor de Portugal» durou um século, nem isso, e depois temos sempre sido um cinema de «reprise», a fazer, em ordinário, o que o «lá fora» já experimentou. Claro que não devemos esperar um D. Sebastião, conhecemos bem a fatal genealogia, mas vale a pena pensar se a nossa tristeza não se compra a troco de centros comerciais e férias nos trópicos, de tv por cabo e futebol. Se, no fundo, não acabámos já como país, e qualquer «absorção» num projecto europeu (que será sempre, a longo prazo, um logro), não constitui um destino inevitável e que aceitaremos de bom grado. Porque quem está entretido não está triste. Embora talvez esteja alienado, como dizia um autor alemão cujo nome não nos acode.

domingo, outubro 27, 2002

NATUREZA HUMANA: Lembram-se quando, aqui há um tempo, Vital Moreira se queixava de que o jornal onde escreve, o PÚBLICO, já não era de esquerda, apesar de ainda ter essa fama? Tal lamento fazia-se a propósito dos editoriais cada vez mais «direitistas» de José Manuel Fernandes. Na verdade, como bom ex-radical de esquerda, o director do PÚBLICO tem vindo a proceder a um interessante realinhamento, do mais trivial (o «ranking» das escolas) ao mais essencial (a guerra contra o terrorismo). Mas essa é a história de grande parte de uma geração que, literal ou metaforicamente, «foi a Londres», isto é, descobriu que o liberalismo, na sua feição conservadora, é o que mais se aproxima de uma visão realista da realidade, e na política a realidade importa muito. Por isso, não é de estranhar que o seu editorial de hoje, a propósito do «mundo perigoso», invoque como argumento a favor de um certo pessimismo a «natureza humana». Ora bem: ao contrário do que as mentes simplistas e caricaturais pensam, a diferença entre a esquerda e a direita passa essencialmente por essa concepção da natureza humana, e não por matérias acidentais, passageiras. É-se de direita porque se suspeita que Rosseau não tinha razão (como JMF aliás refere), porque, «helás pour nous», o Homem não é uma criatura em quem se possa confiar.