ENTRE CONSERVADORES: Caros infames: foi a minha amiga Clara Cabral quem, há dias, me chamou a atenção para a vossa coluna. Dizia-me que pertenciam, tal como ela diz que eu pertenço, àquela direita desenquadrada, sem obediências partidárias ou fidelidades preconceituosas, que se pode dar ao luxo de escrever o que pensa porque nada tem a ganhar ou a perder. Fui ler-vos. E, desde logo, achei estranha a vossa posição sobre a invasão e destruição do Iraque: simplesmente “a favor”. E achei estranha porque, com a excepção daqueles que assumem, de quando em quando, o papel de comissários partidários (como, neste caso, Pacheco Pereira), que frequentemente dizem a contragosto aquilo que são mandatados para dizer, não conheci ninguém de bom-senso que fosse simplesmente “a favor”. Tentei encontrar uma justificação sustentada. E achei-a na vossa evocação de uns lendários “valores liberais”. São “a favor” porque se trata, ao mesmo tempo, de 1) libertar da servidão, numa generosidade messiânica, os povos que não conheceram ainda a incomparável felicidade daqueles que vivem sob regimes liberais, e de 2) mostrar a superioridade desses mesmos regimes, com a sua livre iniciativa, o seu espírito empreendedor, a sua mobilidade, a sua tecno-ciência, a sua modernidade como “aceleração”, para usar a expressão de Peter Sloterdijk, de que a “liberdade” dos B-52 nos céus de um país inimigo é a mais patente manifestação (e a ligeireza com que se dizem asneiras a mais caricatural). Ao contrário do que sugerem, pelo menos implicitamente, parece-me que o que esta guerra demonstrou é a impossibilidade de sustentarmos argumentativamente qualquer “superioridade moral” de regimes e sociedades liberais sobre outras formas de organização política e social. Mesmo a tentativa do recentemente falecido John Rawls de encontrar uma hierarquia de modos de organização política a partir do liberalismo político, tolerando povos que, apesar de não liberais, sejam reconhecidos como “povos decentes”, parece hoje partir de princípios insustentáveis. E isso porque o que esta guerra permite vislumbrar é, para permanecermos na formulação rawlsiana, não apenas a possibilidade, mas até a probabilidade da coexistência entre liberalismo e indecência. Poderão certamente continuar a dizer, numa ingenuidade alegre e festiva, que as sociedades liberais são, apesar de tudo, aquelas onde se respeitam princípios políticos fundamentais, como a igualdade perante a lei ou o direito universal de participação política. Contra esta ingenuidade, talvez seja hoje até dispensável evocar a imagem de Tocqueville de um “despotismo dócil”, onde homens menorizados, deleitados pelos pequenos prazeres da sua vida privada, entregam a condução da sua vida pública a um governo que os proteja e decida por eles. O que hoje se passa, nas nossas sociedades liberais, é bem mais grave e não se reduz à imagem esgotada, mas verdadeira, de uma multidão de homens indiferentes a questões públicas sendo governada por “oligarquias disfarçadas” (de que os partidos políticos são, apesar de tudo, a versão mais inócua). O que hoje se passa é que o liberalismo actual conseguiu verdadeiramente produzir aquilo a que Rafael del Águila, numa expressão felicíssima, chamou “cidadãos impecáveis”: um conjunto de homens mentalmente anestesiados, que pensam, desejam, opinam e até sentem, como se fossem seus, um conjunto de lugares-comuns configurado por várias espécies de marketing, numa espécie de eugenismo mental em que uma “retórica política da liberdade”, descendente pobre de um iluminismo esquecido, encobre o crescimento desmesurado de um poder invisível. Só neste horizonte anestesiante teria alguma eficácia a actual retórica da “criminalização do inimigo”, juntamente com a da “guerra humanitária”, de cuja conjugação os mais recentes discursos do Presidente Bush passarão certamente para a história como os mais admiráveis exemplos. Sinceramente, não esperava ver-vos falar sobre esta guerra apelando para termos como “valores liberais”, “liberdade” ou “civilização”. Com isso, não vos parece que se tornam numa espécie de “Bloco de Esquerda” invertido? Parece-me que sim, o que é pena. Porque o que hoje faz falta na política em geral, e na política e cultura portuguesas em particular, é, para recordar uma distinção de Bonald, uma inteligência que seja o contrário do que o “Bloco de Esquerda” em Portugal representa, e não apenas mais uma sua versão, mesmo que seja, desta vez, uma sua versão ao contrário.
Caro Alexandre F. de Sá: Embora não tencionemos voltar a discutir a justificação da guerra - porque, francamente, não desejamos repetir-nos -, abrimos uma excepção para o seu longo e interessantíssimo mail, que agradeço em nome da Coluna. Suponho que as questões que levanta são demasiado importantes para não serem respondidas, tanto por mim como pelos outros infames. A verdade, para começar, é que temos polemizado em demasia com gente que rejeitou a intervenção militar no Iraque, não em nome de valores políticos claros mas, antes, por causa de um anti-americanismo primário e ignorante. O Direito Internacional não é um valor político claro porque, se quisermos, este foi um caso que demonstrou como a legalidade formal das Nações Unidas pode divergir clamorosamente de uma mais ampla e mais importante legalidade substancial. Esquecemo-nos, entretanto, de que a nossa própria posição, vista a partir da família política onde gostamos de nos inserir – o conservadorismo – precisa de ser sustentada mais consistentemente para resistir às críticas de conservadores esclarecidos como o Alexandre. Aliás, esta discussão teve lugar em Inglaterra: alguns conservadores (por exemplo, Peter Hitchens) rejeitaram a guerra porque, segundo eles, esta é ou foi uma guerra liberal e esquerdista. John Gray escreveu um excelente artigo no New Statesman , contestando, no meio de citações de De Maistre, o optimismo revolucionário dos «novos jacobinos» que rodeiam o sr. Bush. Este mesmo debate está em ebulição nos Estados Unidos, com uma troca de mimos entre paleoconservatives e neoconservatives que mostra bem como anda brando o nosso jornalismo. Em que ficamos? Nós sempre dissemos que os motivos ideológicos desta guerra não eram tão importantes como os seus motivos estratégicos ou políticos. Desde o 11 de Setembro que os Estados Unidos estão legitimados a atacar, mesmo preventivamente, Estados que albergam terroristas, Estados que apoiam terroristas, Estados que colaboram com terroristas, Estados que mantêm um discurso político hostil, totalitário, anti-ocidental de que se alimenta o terrorismo. Portanto, esta guerra resultou de uma decisão nacional dos Estados Unidos, que nos parece legítima nestas circunstâncias e que nos pareceria legítima se fosse outro o país a ser atacado comos os Estados Unidos o foi, desde que – pormenor importante – fosse garantida uma utilização racional da força militar. Os motivos ideológicos da guerra vêm depois. Nós usámo-los moderadamente. Em parte, a nossa insistência nos “valores liberais” – embora sem o entusiasmo e o optimismo que o Alexandre nos imputa – deveu-se à necessidade de lembrar, no debate com todos aqueles que contestaram a guerra mas, estranhamente, se presumem muito progressistas e kantianos – que esta também foi uma guerra liberal e reformadora, procurando, nesse sentido, desacreditar a oposição que a esquerda lhe dirigiu. Mas, por outro lado, é evidente que a derrota de Saddam e a queda do seu regime, nos pareceram factos políticos importantes e louváveis. Temos muitas dúvidas sobre a pronta democratização do Iraque nem achamos que os regimes liberais sejam regimes de «incomparável felicidade» (de resto, nem acreditamos muito na felicidade política). Não achamos que os povos devam viver forçosamente em réplicas mal concebidas das democracias liberais. Mas, caro AFS, uma coisa parece ser certa: o 11 de Setembro trouxe, de facto, para a ribalta política o conceito de civilização. Eu sei que o conceito é discutível, eu sei que a sua descendência intelectual é suspeitosa, eu sei que esta gloriosa civilização liberal é useira em propagar a estultícia (mesmo lhe chamando cidadania); mas também sei que as coisas são o que são, que , mal ou bem, fazemos parte desse mundo e que, modestamente, preferimos esse mundo a quaisquer imaginosas experiências políticas, venham elas de onde vieram. E sei que, em certos momentos, é preciso atacar para não ser atacado, atacar para conservar o que se tem, mudando qualquer coisa. Com tudo isto, poderá responder-me, citando Cioran, que «quem pertence organicamente a uma civilização, não percebe a natureza do mal que a mina». É possível. Deixe-me só dizer-lhe uma coisa: Burke é um dos nossos autores; apreciamos a prosa de De Maistre e Bonald mas deixamos os seus livros na prateleira. Um abraço e escreva sempre. PL